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A Arte de Sonhar no Cinema com David Lynch

  • fevereiro 6, 2025
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Um tributo ao legado de David Lynch, o cineasta que nos ensinou que o cinema não precisa ser explicado, apenas sentido – e que os sonhos não seguem

A Arte de Sonhar no Cinema com David Lynch

David Lynch sempre me fascinou. Não apenas pelos filmes, mas pela maneira como ele enxerga o mundo. Há algo em sua abordagem que desafia o espectador a se entregar à experiência sem a necessidade de entender tudo. Para Lynch, o cinema é uma linguagem que transcende palavras. Ele diz que algumas pessoas são poetas e têm uma maneira linda de dizer coisas com palavras, mas o cinema tem sua própria forma de expressão – um meio mágico, como ele mesmo define.

David Lynch
David Lynch, além de cineasta, foi artista magnífico em outras artes.

Não me lembro qual foi o primeiro filme de David Lynch que assisti. Sei apenas que, quando finalmente entrei em seu universo, foi como ser jogado num sonho do qual eu não tinha certeza se queria acordar. O desconforto, o estranho, a atmosfera carregada de inquietação – eu nunca havia visto nada parecido. E, no entanto, ao final, eu sentia que aquilo fazia sentido em algum nível que as palavras não alcançavam. Era uma experiência sensorial, quase como se Lynch estivesse traduzindo algo profundo diretamente para o inconsciente.

Essa é a mágica de Lynch: ele não precisa que você compreenda racionalmente sua obra, ele quer que você a sinta. Foi assim com “Veludo Azul”, com aquele começo idílico – a grama verde, o céu azul, a música dos anos 50 tocando – para então revelar, logo em seguida, um mundo subterrâneo de violência e perversão. Era como se ele arrancasse a máscara do que consideramos normal para revelar as pulsões obscuras que rastejam por baixo da superfície. E Kyle MacLachlan, nosso guia nesse universo, nos faz sentir tanto a fascinação quanto o medo.

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03 david lynch veludo zauç
Isabella Rossellini em Veludo Azul

Em “Twin Peaks”, Lynch trouxe isso para a televisão. Ele não apenas revolucionou o formato serializado, ele subverteu toda a estrutura da TV aberta americana, trazendo um surrealismo que até então pertencia ao cinema experimental. Ao invés de se ater ao mistério do assassinato de Laura Palmer, como um típico procedural faria, ele estava mais interessado em explorar a atmosfera, os personagens e o absurdo de um mundo que oscilava entre o mundano e o bizarro. Twin Peaks criou uma ruptura. Sem ela, não haveria “Lost”, “True Detective”, “Fargo” ou “Severance”.

Mas o que torna Lynch um autor tão único não é apenas o estilo ou as narrativas que ele constrói. É sua maneira de entender a arte. Ele nunca quis explicar suas obras, porque sentia que o significado delas estava além das palavras. Há algo genuinamente libertador nisso. Em um mundo que exige respostas e explicações imediatas, Lynch nos pede para simplesmente experimentar. Para confiar na nossa intuição. Para sentir, sem tentar racionalizar tudo. Esse é um dos maiores legados que ele deixa.

Em “Cidade dos Sonhos”, talvez seu filme mais aclamado, ele nos guia por um labirinto onírico onde as identidades se desfazem, a realidade se dobra e a lógica se fragmenta. É um filme que assombra porque opera num nível profundo da psique, onde memórias, desejos e medos se misturam. A mesma sensação permeia “Império dos Sonhos”, onde Lynch rompe completamente com qualquer estrutura tradicional e nos convida a vagar pelo desconhecido. Seus filmes são como pesadelos lúcidos – sabemos que algo está fora do lugar, mas não conseguimos sair de dentro deles.

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Naomi Watts em Cidades dos Sonhos
Naomi Watts em Cidades dos Sonhos

Sempre que assisto a filmes como “A Origem” (Inception), sinto uma vergonha alheia imensa. Quem escreveu aquele filme não entendeu que nós não sonhamos em linha reta. Para compreender esse conceito de forma simples, bastava assistir aos filmes de Lynch. Ele sempre soube que os sonhos não obedecem à lógica tradicional. Eles se sobrepõem, se repetem, mudam de forma sem aviso prévio – exatamente como suas narrativas fazem.

Ainda assim, Lynch nunca se viu como um pessimista. Sua visão de mundo, mesmo mergulhada no grotesco, sempre carregou uma esperança genuína. Em “História Real”, talvez sua obra mais acessível, ele conta a jornada de um homem idoso que atravessa os Estados Unidos em um cortador de grama para encontrar seu irmão. É uma história de redenção, de ternura, de humanidade. Para Lynch, o surreal e o sublime coexistem.

David Lynch
David Lynch

E então, há sua filosofia sobre o processo criativo. Ele acreditava que as ideias são como peixes, nadando no fundo da consciência, esperando para serem pescadas. Ele praticava meditação transcendental todos os dias, como uma forma de acessar esse oceano profundo onde suas histórias e imagens surgiam. Essa abordagem espiritual da arte talvez seja o que mais o separa de outros cineastas. Para ele, criar era um ato de conexão com algo maior.

David Lynch não fazia filmes para serem explicados. Ele fazia filmes para serem sentidos. E isso, mais do que qualquer outra coisa, é o que o torna eterno. Ele nos mostrou que o cinema não precisa seguir regras, que a arte pode ser livre e que os sonhos, por mais estranhos que sejam, podem ser belos.

David Lynch faleceu em 15 de janeiro de 2025, e isso me entristece profundamente. Seu legado não está apenas em seus filmes, mas na maneira como ele ensinou o mundo a olhar para o cinema – e para si mesmo – com novos olhos. O mundo ficou um pouco menos estranho sem ele, e isso, de certa forma, é uma pena.

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