Cinema Brasileiro Contemporâneo: Diversidade e Transformação
- novembro 1, 2024
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O conceito de arte contemporânea no Brasil está profundamente ligado à ideia de pluralidade, resiliência e reflexividade
O conceito de arte contemporânea no Brasil está profundamente ligado à ideia de pluralidade, resiliência e reflexividade
O conceito de arte contemporânea no Brasil está profundamente ligado à ideia de pluralidade, resiliência e reflexividade. Antropologicamente, a arte contemporânea reflete as diversas realidades do país: uma sociedade marcada pela desigualdade, diversidade étnica, econômica e social, além dos reflexos históricos do colonialismo, escravidão e dos regimes autoritários. A arte contemporânea, especialmente o cinema, aborda a multiplicidade das vozes brasileiras, desde as margens até o centro, dialogando com questões como identidade, cultura de massa, globalização e resistência.
No cinema, isso se traduz em uma narrativa mais plural, onde temas que antes não recebiam espaço nas produções convencionais agora estão no centro da discussão: como a representatividade racial, a questão indígena, a experiência LGBTQIA+, o papel da mulher na sociedade e os dilemas urbanos e rurais. O cinema contemporâneo no Brasil questiona e dialoga constantemente com essas questões, refletindo a busca por uma identidade que abrange todas essas facetas culturais.
No contexto do cinema brasileiro contemporâneo, o metamodernismo emerge nas obras que combinam elementos estéticos e temáticos pós-modernos — como a intertextualidade, a mistura de gêneros e o uso de ironia — com uma nova busca por autenticidade, esperança e resiliência social. Isso pode ser observado em filmes que enfrentam questões políticas e sociais com uma perspectiva complexa, mas que também carregam uma dimensão de esperança e transformação.
Embora o marco do cinema contemporâneo brasileiro seja frequentemente atribuído a Central do Brasil (1998), de Walter Salles, outros fatores, como o fortalecimento de políticas culturais na década de 1990, foram essenciais para o renascimento do cinema brasileiro. A Retomada foi um movimento crucial após o colapso da Embrafilme (1990), que deixou o cinema nacional em crise. O filme Carlota Joaquina: Princesa do Brasil de Carla Camurati é o início deste movimento que permitiu a reestruturação do setor, graças à Lei do Audiovisual (1993) e à criação da Ancine (2001).
A qualidade artística do cinema brasileiro contemporâneo emergiu de cineastas que passaram a combinar uma estética apurada com uma profunda preocupação social. A partir de Central do Brasil, vemos o cinema brasileiro adotar uma postura intimista e, ao mesmo tempo, crítica. Filmes como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, redefiniram a forma de se contar histórias sobre o Brasil. Ele utilizou uma linguagem visual inovadora, aliada a uma narrativa que expôs as desigualdades sociais de maneira visceral. Essa busca por narrativas realistas, porém artisticamente sofisticadas, é uma marca do cinema contemporâneo.
Filmes como Que Horas Ela Volta? (2015) , Aquarius (2016) e Bacurau (2019) exemplificam essa busca por uma nova estética, onde a fotografia, a trilha sonora e o uso de elementos narrativos simbólicos se tornam fundamentais para realçar os dilemas sociais e culturais. Em Aquarius, a fotografia urbana transforma Recife em um personagem vivo, onde a gentrificação e o progresso artificial sufocam a memória coletiva. Já em Bacurau, o uso de elementos de gênero, como o faroeste e o suspense, aliados a críticas políticas explícitas, estabelece o filme como uma obra única, conectada tanto ao público brasileiro quanto ao internacional.
Esse ciclo de filmes contemporâneos tem uma característica comum: eles transitam entre o pessoal e o político, mantendo um olhar atento às transformações sociais, culturais e econômicas do Brasil. A arte não é apenas um reflexo da realidade, mas também uma ferramenta crítica de reflexão sobre essa mesma realidade.
Que Horas Ela Volta? (2015)
Boi Neon (2015)
A Cidade Onde Envelheço (2016)
As Boas Maneiras (2017)
O Processo (2018)
Bacurau (2019)
Democracia em Vertigem (2019)
Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou (2019)
A Vida Invisível (2019)
Marte Um (2022)
Vou aprofundar o filme Boi Neon (2015), dirigido por Gabriel Mascaro, por considerá-lo uma obra fundamental do cinema brasileiro contemporâneo. O filme se destaca por diversos aspectos estéticos, temáticos e narrativos, refletindo características essenciais desse movimento, como a experimentação visual, a abordagem de temas sociais complexos e a desconstrução de expectativas de gênero e identidade.
Boi Neon utiliza uma linguagem visual sofisticada e experimental que dialoga com as tendências do cinema contemporâneo. A estética do filme é contemplativa e intimista, com uma cinematografia que valoriza as texturas dos corpos, dos cenários e da luz. A câmera de Mascaro frequentemente foca em detalhes sutis, criando uma experiência sensorial marcante — um traço comum em cineastas contemporâneos que buscam formas alternativas de narrativa.
A obra combina o realismo social com toques poéticos, oscilando entre o brutal e o sensível. Um dos pontos fortes do filme é a exploração do corpo e da fisicalidade, algo evidente nas cenas em que o protagonista trabalha em um matadouro e também naquelas que mostram sua paixão pela moda. Esses momentos capturam de maneira profunda a dualidade entre o trabalho braçal e a sensibilidade criativa.
O filme trata de questões centrais para o Brasil contemporâneo, como a vida rural, as diferenças sociais, os conflitos de gênero e o choque entre tradição e modernidade. Ambientado no sertão nordestino, Boi Neon foge dos estereótipos comumente associados à região. Ao invés de mostrar o Nordeste apenas como um lugar de pobreza e sofrimento, Mascaro nos apresenta um universo multifacetado, cheio de contradições e possibilidades.
Um dos elementos mais impactantes do filme é a subversão das expectativas de gênero. O protagonista, Iremar (interpretado por Juliano Cazarré), é um vaqueiro que trabalha em vaquejadas, mas seu verdadeiro sonho é ser estilista de moda. Essa contradição questiona as noções tradicionais de masculinidade e desafia o papel dos gêneros em uma sociedade que ainda valoriza o estereótipo do “homem viril”. Nesse sentido, Boi Neon se insere em uma narrativa metamoderna, alternando entre o realismo social e a busca poética por identidades fluidas e complexas.
A estética e os temas do filme também dialogam com o cinema de arte contemporâneo global. Ele se aproxima de diretores como Apichatpong Weerasethakul (Tailândia) e Carlos Reygadas (México), que mesclam o realismo social com o surrealismo, explorando corpos e paisagens de forma sensorial e poética. Esse caráter cosmopolita contribui para o posicionamento do cinema brasileiro contemporâneo no cenário internacional, refletindo questões locais e, ao mesmo tempo, conectando-se com tendências globais.
Boi Neon foi amplamente reconhecido em festivais internacionais, recebendo prêmios importantes, como o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza. Esse reconhecimento internacional reforça a importância do filme no cenário contemporâneo, em especial dentro do contexto do cinema brasileiro pós-Retomada, que tem buscado maior visibilidade global com produções autorais.
Outro aspecto típico do cinema contemporâneo presente no filme é o uso de uma narrativa fragmentada e contemplativa. Em vez de seguir uma estrutura linear convencional com conflitos e resoluções rápidas, Boi Neon oferece uma experiência mais sensorial e emocional. Esse estilo se alinha à abordagem metamoderna, na qual os limites entre o cotidiano e o poético, o pessoal e o político, são borrados.
O filme se concentra em momentos do cotidiano dos personagens, sem a pressa de criar um “clímax” tradicional, característica de uma tendência contemporânea que busca proporcionar ao espectador uma experiência mais imersiva e reflexiva.
Por fim, Boi Neon aborda a vida de personagens à margem da sociedade: trabalhadores braçais, migrantes e pessoas que vivem entre dois mundos — o tradicional e o moderno, o rural e o urbano, o masculino e o feminino. Essa tensão entre margens e centros, entre o desejo de transformação e as limitações impostas pela realidade, é uma marca do cinema brasileiro contemporâneo.
A estética inovadora, a subversão das expectativas de gênero, a exploração de questões sociais e o sucesso internacional colocam Boi Neon entre os filmes mais relevantes do Brasil recente. Ele exemplifica como o cinema contemporâneo pode ser uma reflexão profunda sobre a realidade brasileira, ao mesmo tempo em que abre janelas para novas possibilidades artísticas e narrativas.
A obra de Gabriel Mascaro não só reflete a complexidade do Brasil contemporâneo, como também desafia os limites do que se espera do cinema nacional, estabelecendo um diálogo com o cinema mundial.
Quantos filmes usaram o Fundo Setorial / ANCINE para ser produzido?
A Agência Nacional do Cinema (Ancine), criada em 2001, atua como órgão regulador e fomentador da indústria cinematográfica brasileira. Seu papel vai além do simples fornecimento de financiamento; a agência busca estruturar o setor de maneira sustentável, facilitando a produção, distribuição e exibição de filmes nacionais.
Desde a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) em 2006, sob a gestão da Ancine, centenas de filmes brasileiros foram produzidos com recursos desse fundo. O FSA tem como objetivo apoiar produções nacionais de diferentes gêneros e formatos, em várias etapas — do desenvolvimento à finalização e distribuição.
Estima-se que, até 2020, o FSA tenha financiado mais de 800 filmes brasileiros, incluindo longas-metragens, curtas e séries para televisão e plataformas digitais. Muitos desses filmes foram exibidos em festivais internacionais renomados, como Cannes, Berlim e Veneza, colocando o cinema brasileiro em destaque no cenário global.
O número de projetos apoiados pelo FSA varia anualmente, de acordo com a disponibilidade de recursos e o volume de projetos selecionados. Esse apoio tem sido crucial para manter a competitividade e diversidade da indústria cinematográfica no Brasil. No entanto, nos últimos anos, o processo de liberação de verbas enfrentou desafios devido à burocracia e a mudanças políticas, o que impactou o fluxo de novos lançamentos.
Até 2024, o FSA continuou a ser uma fonte importante de financiamento para o audiovisual brasileiro. Em 2023, foram lançadas seis Chamadas Públicas, com 1.402 projetos inscritos, dos quais 244 foram selecionados para receber apoio financeiro. Essas iniciativas abrangeram produções e comercialização de obras cinematográficas, com um total de R$453,7 milhões em recursos disponibilizados. Os valores médios aportados foram de R$506 mil para comercialização e R$1,8 milhão para produção.
Além disso, o FSA apoiou 168 produtoras brasileiras independentes em 2023, sendo 98 delas classificadas como iniciantes. No setor de televisão, 122 projetos também foram selecionados, com um montante adicional de R$200 milhões destinados a esse mercado.
Esses dados refletem uma retomada significativa após os desafios impostos pela pandemia, com novos investimentos sendo direcionados para estimular a produção nacional em 2024. A importância da Ancine se manifesta não apenas como financiadora, mas também como reguladora, garantindo a diversidade de conteúdo e promovendo tanto grandes produções quanto filmes independentes e documentários.
O futuro do cinema brasileiro depende da continuidade de políticas culturais que protejam o Fundo Setorial do Audiovisual e incentivem a criação de obras que representem a pluralidade do Brasil.
Culturalmente, Que Horas Ela Volta? aborda uma questão profundamente enraizada na sociedade brasileira: a relação entre patrões e empregadas domésticas. O filme revela como a estrutura patriarcal e de classes afeta não apenas as oportunidades de ascensão social, mas também os vínculos emocionais entre indivíduos de classes diferentes. Socialmente, o filme é uma crítica direta à elite brasileira e às mudanças provocadas pela ascensão da nova classe média no Brasil.
Filosoficamente, a obra explora o conceito de “lugar” — o espaço físico e simbólico que cada pessoa ocupa em uma sociedade hierarquizada. A protagonista, Val, é uma empregada que, de certa forma, está “presa” ao espaço da casa, uma metáfora para sua posição na pirâmide social. A chegada de sua filha, que questiona essa dinâmica, simboliza a nova geração que não aceita passivamente os limites impostos pelas estruturas de poder.
O documentário de Petra Costa oferece uma análise pessoal e política sobre os eventos que culminaram no impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Culturalmente, é um filme que reflete a polarização do Brasil, trazendo à tona as tensões entre as diferentes classes sociais e os impactos do autoritarismo na democracia.
Filosoficamente, o documentário levanta a questão da construção da história e da verdade. Ele apresenta um ponto de vista claramente subjetivo, mostrando como os eventos históricos são moldados por perspectivas individuais e coletivas. A câmera de Costa não se posiciona como uma observadora neutra, mas sim como parte ativa do processo de interpretação da política brasileira.
Culturalmente, Bacurau é um filme que dialoga com a tradição do cinema brasileiro de resistência, remontando ao Cinema Novo. A narrativa aborda a resistência de uma comunidade rural contra invasores estrangeiros que pretendem eliminar seus habitantes, um claro comentário sobre o neocolonialismo e as relações de poder globais.
Socialmente, o filme discute a marginalização das populações do interior do Brasil, frequentemente esquecidas pelas elites políticas e econômicas. A resistência dos moradores de Bacurau se torna uma metáfora para a luta das minorias e das comunidades marginalizadas em manter sua identidade e autonomia. Filosoficamente, o filme explora a noção de comunidade e de pertencimento, destacando como o coletivo pode se sobrepor ao indivíduo para garantir a sobrevivência.
Marte Um é uma reflexão sobre os sonhos e as realidades enfrentadas por uma família negra brasileira no período pós-eleitoral de 2018, quando o país vivia uma profunda polarização política. Culturalmente, o filme reflete sobre a ascensão da classe média e como a cor da pele continua a influenciar as oportunidades disponíveis para as famílias no Brasil.
Filosoficamente, o filme trata dos sonhos e das esperanças em um mundo adverso. O título faz referência ao desejo de um dos protagonistas de ser um dos primeiros humanos a colonizar Marte, um símbolo de aspiração por um novo começo, longe das dificuldades terrenas. O filme explora o conceito do futuro como uma promessa, mas também como uma utopia inatingível.
Este filme mistura gêneros como o horror e a fantasia para contar a história de uma mulher que engravida de um ser sobrenatural. Culturalmente, o filme aborda as tensões entre classes sociais através da relação entre a protagonista rica e a babá, que é contratada para cuidar da criança.
Socialmente, As Boas Maneiras é um comentário sobre a maternidade, a solidão e as barreiras sociais. Filosoficamente, o filme explora o tema do “outro” — o que é diferente e, portanto, temido ou rejeitado. Ele também questiona a moralidade e a ética no tratamento do desconhecido, levantando questões sobre tolerância e aceitação.
Essas informações podem ajudar a localizar os filmes com maior facilidade nas plataformas de streaming. Caso algum título não esteja disponível em streaming, recomenda-se verificar a disponibilidade em DVD.
Graduado em Pedagogia e Cinema pela PUC-Rio, Leo Arturius assumiu a cadeira de direção em nove filmes, como produtor foram oito e outros sete como continuísta. Desde 2016 oferece cursos de roteiro e documentário na cidade de Nova Friburgo e, em 2017, obtive seu ápice profissional ao ter um filme selecionado no Festival de Cannes. A carreira teve uma guinada em 2019, começou a fazer exposição de fotografia sobre a cidade de Nova Friburgo. Friburguenses e cariocas já tiveram a oportunidade de entrar em contato com seu olhar de estrangeiro sobre a cidade serrana. Em 2023 assumiu a cadeira de professor de documentário no Colégio Nossa Senhora das Dores e de marketing digital no Senai Nova Friburgo. Em 2024 retorna a atuação regular em produções com sua direção cinematográfica e assumiu o cargo de produtor de conteúdo na TV Zoom.