Coringa: Delírio a Dois – Uma Desconstrução Dolorosa
- outubro 11, 2024
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Seria uma obra genial ou uma narrativa que se desconectou de seu próprio propósito?
Seria uma obra genial ou uma narrativa que se desconectou de seu próprio propósito?
ESTE TEXTO POSSUI SPOILERS E OPINIÕES AMBÍGUAS.
A cena de abertura de um filme é crucial para inserir o público no universo que será explorado ao longo da narrativa. Em Coringa: Delírio a Dois, o diretor Todd Phillips nos imerge imediatamente no conflito interno de Arthur Fleck e sua transformação no Coringa, utilizando um desenho animado de Sylvain Chomet. Desde o início, é estabelecido o mapa emocional da trama, preparando o público para um mergulho profundo na psique dos personagens e nas consequências de seus atos. A escolha desse estilo artístico é significativa, pois não apenas cria expectativas e desperta emoções iniciais, mas também nos conecta com os conflitos imaginativos que se seguirão.
Uma das questões mais intrigantes levantadas pelo filme é o confronto de Arthur com sua “sombra”. Carl Jung, renomado psicólogo, descreveu a sombra como os aspectos ocultos da nossa personalidade — aqueles que preferimos evitar. No caso de Arthur Fleck, o Coringa parece ser a personificação dessa sombra. Jung acreditava que a sombra é inevitável e, quando ignorada, pode levar a uma vida de confusão, culpa e alienação. Neste segundo filme, no entanto, surge uma nova camada de culpa em Arthur, algo ausente na versão do Coringa apresentada no primeiro longa.
Quando evitamos confrontar nossa sombra, ela pode começar a influenciar nossas decisões de maneira inconsciente, afastando-nos da nossa verdadeira essência. Arthur parece ser dominado por sua sombra, enquanto esta não demonstra remorso ou culpa por seus atos. O interessante em Delírio a Dois é que o filme começa a explorar o sentimento de culpa em Arthur, desenvolvendo um arco no qual ele tenta lidar com as consequências de suas ações. Mas será que Arthur realmente está em busca de redenção ou apenas quer ser visto e amado, como o primeiro filme sugeria?
Se você assistiu ao primeiro Coringa, há uma expectativa natural de continuidade ou evolução na trama. No entanto, enquanto o primeiro filme deixava em aberto o que era real e o que era fruto da imaginação de Arthur, Delírio a Dois desfaz essa ambiguidade e transforma tudo em realidade ou deixa claro essa separação. A frase final de Arthur no primeiro filme — “Pensei numa piada. Você não ia entender” — nos deixou com a ideia de que muito do que vimos poderia ser um delírio. Ele cria um mundo onde o Coringa se torna um herói revolucionário, símbolo de uma luta contra a desigualdade social e o caos, mesmo que esses atos tenham origem em sua insanidade e anarquia. Qual seria o antídoto para resolver isso? Criando o Batman, como o Coringa fez em sua cabeça.
Já em Delírio a Dois, o filme segue por um caminho mais direto e literal, confirmando a veracidade dos eventos e descartando a dúvida sobre o que era sonho ou realidade. Essa inversão de expectativas gera uma desconexão no público, especialmente porque o filme não só nega o prazer de desvendar essa ambiguidade, mas também adota uma estrutura narrativa inesperada: o musical clássico. A ironia dessa escolha é que, enquanto o musical normalmente amplifica as emoções, aqui ele parece silenciá-las, como se a própria narrativa estivesse presa no mundo interno de Arthur.
A escolha pelo musical como gênero é, sem dúvida, ousada. Todd Phillips subverte o gênero, que geralmente evoca grandiosidade e emoção, para criar um efeito contrário. Em vez de intensificar os sentimentos do público, o musical em Delírio a Dois frustra, oferecendo uma experiência que parece propositalmente desconexa. Arthur Fleck, que já habitava um mundo de fantasia no primeiro filme, agora se perde em números musicais que existem apenas em sua cabeça. Isso gera uma desconexão entre o que o público espera de um musical e o que o filme entrega: uma forma de “punição” coletiva, onde as músicas não têm impacto no mundo real, mas apenas ecoam os delírios de Arthur.
Nesse contexto, o musical se torna um reflexo da mente distorcida de Arthur, uma espécie de fuga de sua dor e solidão. Ao colocar Lady Gaga (Harleen Quinzel), uma artista extraordinária, em segundo plano, o filme reforça essa desconexão, relegando-a a cenas musicais irrelevantes, enquanto Fleck assume o controle total da narrativa. As músicas não possuem o poder transformador, como em outros musicais clássicos, mas sim espelham a condição de Arthur, preso em sua própria mente.
O título Folie à Deux (Delírio a Dois) refere-se a uma condição psicológica na qual duas pessoas compartilham o mesmo delírio. No filme, isso se manifesta na relação entre Arthur e Harley Quinn (Lady Gaga). A presença dela altera a dinâmica psicológica de Arthur, já que agora ele encontra alguém que compartilha sua insanidade. Harley não é apenas um contraponto romântico, mas uma extensão do próprio delírio de Arthur, tornando-se uma figura que o ajuda a reforçar suas ilusões.
Making of: Veja Lady Gaga como Lee Quinn
Essa dinâmica, porém, levanta uma questão central: Arthur está em busca de amor e conexão, ou sua relação com Harley é apenas mais um artifício para alimentar seu ciclo de abuso e violência? Harley compartilha seu delírio, mas isso a torna cúmplice ou vítima? A construção dessa relação levanta questões sobre a codependência em relacionamentos abusivos e como a saúde mental desempenha um papel fundamental na narrativa.
Uma das discussões mais relevantes sobre o filme é seu impacto social. O primeiro Coringa gerou debates acalorados sobre a glorificação da violência e as possíveis interpretações errôneas do personagem. Delírio a Dois aborda temas como desigualdade social, saúde mental e violência de maneira ainda mais complexa. Arthur Fleck se torna um símbolo de uma sociedade em colapso, onde as instituições falham em atender os mais vulneráveis, e a violência emerge como um grito de desespero.
Neste contexto, o filme ressalta o ciclo de desumanização dos marginalizados. Pessoas como Arthur, que sofrem com transtornos mentais e são negligenciadas por uma estrutura social ineficaz, acabam caindo nas lacunas de um sistema que prioriza interesses econômicos e políticos. O filme mostra como a falta de suporte adequado para indivíduos em situação de vulnerabilidade pode resultar em reações extremas, que por sua vez reforçam o estigma em torno das doenças mentais.
Esse retrato pode ser lido como um espelho de problemas atuais, em que o aumento da desigualdade social e a crise nos sistemas de saúde mental contribuem para o isolamento de indivíduos que necessitam de assistência. A pandemia de Covid-19, por exemplo, acentuou as falhas desses sistemas e expôs ainda mais o sofrimento de populações negligenciadas. Ao ilustrar o fracasso em tratar a doença mental de Arthur, o filme acaba refletindo uma sociedade que, em muitos casos, ignora as condições de quem precisa de ajuda, agravando ainda mais o problema.
Coringa: Delírio a Dois não é um filme que entrega respostas fáceis. Ele desafia expectativas, aliena seu público e subverte gêneros. A escolha de Todd Phillips de adotar o musical e negar convenções esperadas é, ao mesmo tempo, brilhante e frustrante. A obra pode ser vista como uma exploração ousada da psique humana e uma crítica contundente à sociedade ou como uma desconstrução narrativa que se perde em seus próprios excessos. Essa ambiguidade é, ao mesmo tempo, o ponto forte e a maior fraqueza do filme.
Delírio a Dois é uma obra que provoca reações polarizadas, seja pelo distanciamento das convenções estabelecidas no primeiro filme, seja pela ousadia de explorar temas complexos como saúde mental e relações abusivas através de uma estrutura musical inusitada. Para alguns, pode ser um exercício brilhante de subversão cinematográfica; para outros, uma narrativa desconexa e frustrante. Mas, independentemente da opinião pessoal, é inegável que o filme de Todd Phillips instiga reflexões profundas sobre a psique humana, a sociedade e as sombras que carregamos.
Estamos diante de uma obra de genialidade cinematográfica ou de uma narrativa que se desconectou de seu próprio propósito e não se importa nem um pouco com o espectador?
O diretor Todd Phillips, fez revelações bastante impactantes sobre o final de Coringa: Delírio a Dois com spoiler, em uma entrevista à Entertainmente Weekly.
“Quando aqueles guardas matam aquele garoto no hospital, ele percebe que se vestir de palhaço, colocar aquela maquiagem, não muda nada. De certa forma, ele aceitou o fato de que sempre foi Arthur Fleck; nunca foi essa coisa que lhe impuseram, essa ideia que as pessoas de Gotham colocaram sobre ele, que ele representa. Ele é um ícone involuntário. Essa imagem foi colocada sobre ele, e ele não quer mais viver como um falso — ele quer ser quem realmente é“.
Você concorda com o diretor?
A sequência de Coringa não tem alcançado o mesmo sucesso do primeiro filme. Apesar de um orçamento robusto de US$ 200 milhões, incluindo pagamentos milionários para Joaquin Phoenix e Lady Gaga que somaram US$ 50 milhões, a arrecadação de ‘Coringa: Delírio a Dois’ nos primeiros cinco dias ficou abaixo das expectativas, alcançando apenas US$ 116,5 milhões. O primeiro ‘Coringa’, por sua vez, com um orçamento de apenas US$ 55 milhões, surpreendeu ao faturar US$ 96,2 milhões em seu primeiro fim de semana e ultrapassar a marca de US$ 1 bilhão em bilheteria mundial.
Graduado em Pedagogia e Cinema pela PUC-Rio, Leo Arturius assumiu a cadeira de direção em nove filmes, como produtor foram oito e outros sete como continuísta. Desde 2016 oferece cursos de roteiro e documentário na cidade de Nova Friburgo e, em 2017, obtive seu ápice profissional ao ter um filme selecionado no Festival de Cannes. A carreira teve uma guinada em 2019, começou a fazer exposição de fotografia sobre a cidade de Nova Friburgo. Friburguenses e cariocas já tiveram a oportunidade de entrar em contato com seu olhar de estrangeiro sobre a cidade serrana. Em 2023 assumiu a cadeira de professor de documentário no Colégio Nossa Senhora das Dores e de marketing digital no Senai Nova Friburgo. Em 2024 retorna a atuação regular em produções com sua direção cinematográfica e assumiu o cargo de produtor de conteúdo na TV Zoom.